Caso Celso Daniel

Já se ouve a marcha fúnebre
de uma narrativa fraudulenta

DANIEL LIMA - 28/01/2022

Os primeiros acordes da marcha fúnebre da teoria conspiratória do Caso Celso Daniel, prevalecente no imaginário popular há 20 anos, começaram a ganhar uma direção segura e esclarecedora.   

Os dois primeiros capítulos de oito do documentário Caso Celso Daniel, do diretor Marcos Jorge, que a Globoplay começou a exibir ontem, já ganharam força de tração para chegar ao destino esperado há duas décadas. O ritmo deverá aumentar nos próximos capítulos. A mentira tem sempre a perna curta. Mesmo que demore a aparecer.  

Os industrializadores de narrativas fraudulentas vão pagar o preço salgado do descrédito. Por mais que ao fim dessa extraordinária obra de audiovisual ainda resista entre muitos a ideia de que o crime foi de mando, é certo que a hora da verdade massificada por uma grande plataforma de streaming vai chegar. É só questão de mais três semanas.  

ÁGUAS TURVAS  

Esse é um aviso aos navegantes de águas turvas de manipulações, sobretudo consumidores de informações deformadas ao longo do tempo. Não comemorem antecipadamente alguns vetores pontuais da narrativa cinematográfica. A surpresa do contragolpe estará logo adiante.  

Afinal, uma obra dessa qualidade não cometeria a bobagem de deixar em aberto o cerco às imundícies que se acavalaram durante duas décadas de manipulação e covardia, quando não de sordidez.  

Uma avaliação como essa, que carrega sim um tom pesado, é uma forma de manifestação em desagravo aos injustiçados. Não peçam diplomacia em contraposição à criminalização ensandecida.  

Os insensíveis que me perdoem, tanto quanto os retardatários, mas para quem acompanha de perto o Caso Celso Daniel desde o nascedouro, os dois primeiros episódios são uma catarse.  

MERGULHO PROFILÁTICO  

A produção impecável da Escarlate tem mais que um significado técnico-operacional que praticamente impõe a importância da audiência como instrumento de organização do pensamento político e social. 

É, definitivamente, um chute bem dado, certeiro, nos fundilhos de tudo o que se lançou na praça em forma de supostos documentários – e também de livros que não passaram de colagens de reportagens imprecisas. Quantas bobagens foram disseminadas por gente que se diz autoridade e jornalista, mas não passam de oportunistas.  

O Caso Celso Daniel da Escarlate do diretor Marcos Jorge é uma obra que mergulha definitivamente no pântano de versões do assassinato do então prefeito de Santo André e homem de ouro do PT que ganhou a disputa presidencial naquele 2002. E emerge gradualmente límpida. 

O desfecho do funeral em forma de sepultamento de quinquilharias de imprecisões, fake news, tropeços e delinquências avaliativas do Caso Celso Daniel, é o final mais evidente no horizonte de oito episódios.  

As raízes da realidade dos fatos já foram plantadas nos primeiros 25% de insumos.  

HUMANISMO SEM MÁSCARA 

Talvez o envolvimento profissional intenso com o Caso Celso Daniel me leve a um tom acima do que se convencionou chamar de distanciamento crítico, mas é nessas horas que vale a pena ceder espaço à humanidade e à solidariedade no acompanhamento do documentário que terá dois novos capítulos na próxima semana.  

Bendito comprometimento com os fatos, com a história, com os testemunhos como um todo. Me sinto um torcedor de um dos times numa final de campeonato. E meu time, nesse caso, desde o princípio, está vivíssimo da silva. A mentira será sufocada porque o outro time em campo é um time fabricado pela maledicência, pela maliciosidade, por tudo que a civilização deveria execrar. 

E antes que eventuais apressados vejam qualquer resquício de partidarismo e ideologia nessa nova abordagem do Caso Celso Daniel, convém esclarecer as coisas: o crime foi retirado da lógica comprovada do ambiente de degradação da segurança urbana na Região Metropolitana de São Paulo e deslocado para a gestão de Celso Daniel que, como a maioria das gestões públicas, contava sim com esquema de arrecadação paralela.  

CHEGA DE HIPOCRISIA 

Não só arrecadação paralela que vinha do passado e se alterou com a mudança de gestão. Também se insere na premissa lógica de que se registravam desvios para o Caixa Dois e o Caixa Três. Como se vê na maioria das esferas públicas.  

Joguem a hipocrisia no lixo. Mensalão e o Petrolão, casos famosos, não foram modalidades inauguradas pelo PT. Apenas foram sistematizadas pelo PT – e com isso ganharam escala. 

Exposto isso e para evitar etiquetagens que não têm lastro, vale a pena voltar ao documentário. E não pretendo esgotar o que observei atentamente no que vi ontem em duas sessões, de manhã e à noite.  

Como acompanhei com relativa proximidade a gestação desse documentário antes mesmo das gravações de que participei em oito de maio, uma dúvida me assombrava na expectativa por um trabalho desafiador que não poderia deixar de trafegar pelo estreito corredor do didatismo.  

DESAFIOS SUPERADOS  

Sim, o Caso Celso Daniel destes 20 anos depois é uma estrada tortuosa para quem é da geração do assassinato e muito mais aos consumidores de cultura que chegaram depois --- essa meninada indócil em busca de aventuras próprias e de terceiros.  

Como Marcos Jorge e sua equipe na Escarlate fariam para transformar montanhas de entrevistas e imensidão de textos da mídia, além de provas documentais, em algo que não fosse tão embaralhado quanto exaustivo?  

Minha preocupação era e continua sendo fundamentada porque a produção em audiovisual tem fortes semelhanças com a edição de um jornal, de uma revista, atividade em que me envolvi anos a fio.  

Como construir encadeamentos que reúnam cronologia e fatos de modo que o telespectador não se perca na compreensão da dinâmica e se atenha fluentemente à dinâmica? 

FIO DA MEADA  

E o que falar então da arte da costura do produto diante de tantos entrevistados? Como definir o encaixe adequado em nova abordagem? Como evitar que um buraco circunstancial e proposital na narrativa cinematográfica se desprenda do fio da meada resolutivo e esclarecedor mais adiante? 

Há tanto um intrincadíssimo painel de filigranas nas especificidades que geram um produto audiovisual de tamanho fôlego que tudo é possível. Imagine-se então no Caso Celso Daniel, de complexidade asfixiante.  

A figura de imagem da marcha fúnebre iniciada nesta quinta-feira talvez seja prospectivamente atrevida ao induzir leitores a acreditarem que muita gente que jogou o jogo de versão fraudulenta vai quebrar a cara. No caso específico do assassinato de Celso Daniel a versão fraudulenta sempre esteve do outro lado do campo, no campo dos defensores da morte por encomenda. 

ENGANO VEXAMINOSO  

Se os leitores entenderem, portanto, que há atrevimento e ousadia em chamar de réquiem o desfecho da leitura de domínio público do Caso Celso Daniel, o mínimo que posso expressar em atenção à franqueza exposta é que podem anotar na caderneta de especulação: a Grande Mídia que se aliou à força-tarefa do Ministério Público instalado em Santo André levou à sociedade a engano vexaminoso.  

Não tem choro nem vela o desenlace do Caso Celso Daniel da Globoplay. Os petistas que se opunham ao documentário, porque o calendário dos 20 anos do assassinato insiste em ser o mesmo das eleições presidenciais, em 2002, podem ficar descansados e aguentarem o tranco da parte da verdade que foi associada à parte da mentira para dar no que deu, ou seja, que Celso Daniel morreu porque se opunha ao sistema de arrecadação paralela em Santo André. 

Os petistas podem começar a comemorar o que parece mais que consolidado na arena dos dois primeiros episódios: não há como os propagandistas do crime de encomenda sustentarem a versão. Afinal, eles não estarão mais sozinhos, livres, leves e soltos a dar entrevistas, enquanto a Policia Civil e a Policia Federal foram impedidas de dar declarações durante quatro, cinco anos seguidos. 

Agora o jogo que está sendo jogado é jogo de verdade, com dois times em campo e a verdade sabatinada e escrutinada.  

O Caso Celso Daniel do documentário da Globoplay levado aos meus olhos ontem de manhã e também ontem à noite é uma louvação sutil, delicada, quase frágil, à verdade dos fatos.  

MOVIMENTOS SINCRONIZADOS  

Engana-se quem acredita que a obra da equipe de Marcos Jorge carrega alguma porção de ingenuidade, quando não de imaturidade, ou mesmo de insegurança diante das pressões extracampo que culminaram em hostilidades sutis ao lançamento.  

O Caso Celso Daniel é uma coleção de movimentos sincronizados que se direcionam ao eixo natural dos fatos. Não existirá, pelo que se apresentou em dois episódios, pontas soltas.  

Declarações tratadas pela mídia como intocáveis, cairão por terra. O contraditório é um antídoto que, ao ser ministrado, como começou a ser, desmonta peça por peça desse mosaico de barro.  

A arte de Marcos Jorge na consecução de um projeto polêmico por natureza é que o diretor da Escarlate adotou a sutileza do profissionalismo ao invés da barulheira do partidarismo.  

CREDIBILIDADE INTOCÁVEL  

Sem precisar mover um músculo sequer de opinião subjacente ou de interpretação maliciosa, o documentário apresentado até agora é o refinamento de credibilidade intocável na medida em que deixa para os próprios atores, no caso os entrevistados, a exposição de conhecimento e de desconhecimento, quando não de entorpecimento e oportunismo.  

Vou traduzir na próxima segunda-feira, em termos específicos, a conceituação do significado do prevalecimento do entrechoque esclarecedor de ideias sobre o estardalhaço abrasivo de convicções. 

O documentário da Globoplay não caiu na esparrela de forçar a barra para qualquer um dos lados – do crime de encomenda e do crime comum – para levar os telespectadores a conclusões mesmo que precárias, por enquanto.   

Aliás, conclusões precárias são a melhor interpretação para quem, como a maioria dos assinantes da plataforma de streaming, não tem o emaranhado domesticado, embora essa mesma maioria parta de um marco que coloca Sérgio Gomes da Silva na linha de tiro de responsabilidade pelo crime.  

A marcha fúnebre das inverdades instrumentalizadas muito antes que fake news virasse sinônimo de redes sociais colocará a Grande Mídia em situação desconfortável.  

Preguiçosos, imprecisos, alarmistas e unilaterais foram os veículos de comunicação mais poderosos do País que conduziram e amplificaram uma narrativa de desprezo aos inocentes e de glorificação de assassinos sociais.



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